Como harmonizar favas e vinho?

Desde há 6 mil anos no Próximo-Oriente as favas alimentam e encantam, nutritivas e saborosas como são. Os romanos antigos levavam a Vicia faba a sério, e os romanos modernos ainda não abrem mão de, na chegada da primavera, beber uns bons goles do seu Frascati com favas, salames locais e um contrastante queijo Pecorino. Contudo, são os portugueses os imbatíveis mestres na sua execução culinária. Quais vinhos harmonizar então com este precioso feijão anúncio de primavera?

FAVAS NO MUNDO

O facto das favas serem das únicas espécies das Fabacae - ou leguminosas que compreendem as vagens, ervilhas e feijões - que não se originaram na América do Sul ou Central, possibilitou-as de percorrerem o mundo desde a sua origem na bacia do Mediterrâneo e se estabelecerem como base alimentar da Europa à Ásia, e depois também nas Américas. O receituário é global e gigantesco, e como parte daqueles que veneram as favas, sempre faço questão de provar as diversas interpretações que encontro delas por todos os lados. Riquíssimas em sabor e algo amargas, as nossas leguminosas deste artigo entram naquela categoria dos alimentos idiossincráticos, que dividem amor ou ódio, há que se respeitar. 

O maior produtor mundial de fava é a China, e na chegada da primavera aparecem nas ementas inúmeras receitas regionais. Numa feita em Londres comi as favas refogadas com bacon chinês e pimentas de Sichuan, perfumadas com um toque de vinho de arroz, molho de soja e gergelim torrado. Um belo Riesling Spätlese do Mosel fez as honras com louvor, e acho que até converteria alguns detratores das favas para o nosso lado dos entusiastas inveterados. 

Nascido no Egito, que por sinal é um dos 10 maiores produtores de fava, e espraiado por todo o Levante e atualmente pelo mundo, o falafel é um bolinho de fava que também pode levar grão-de-bico, perfumado com os temperos mouriscos. Servido com o homus de grãos, o falafel agradece vinhos rosés que tragam frescura para contrastar com a fritura e também fruta ensolarada que confere maciez gustativa para amortecer arestas de amargor das favas e do tahini de gergelim, ingrediente fundamental do homus. Um rosé do alto vale do Bekaa, sempre rico e fresco, é a minha escolha técnica, com sotaque médio-oriental.

Também encontro favas na mesa mexicana em sopas ou no recheio de tlacoyos, e nestes casos um Fumé Blanc ou um White Zinfandel do Valle de Guadalupe na Baja California são ótimas escolhas para uma harmonia regional. Também abundam em vários outros países da América Central e do Sul, onde estas leguminosas chegaram no séc. XVI. 

Se há um país na Europa que pode competir com Portugal na tradição e paixão pelas favas, este é a Itália. Por ser um prenúncio da primavera e um dos primeiros vegetais a serem colhidos após o inverno, as favas são associadas na velha península às refeições alegres “fuori porta”, e em diversas regiões ainda é tradição comer os primeiros rebentos de fava crus, doces e suculentos, a contrastar com o salgado e especiado dos salames e do queijo Pecorino. Essa harmonização da fava com o Pecorino é realmente divinal, assim como quando confrontada com os outros “sais” do mundo, incluindo aí as anchovas e a pancetta. As favas assim tão tenras e precoces acompanham muito bem os brancos mediterrânicos de Itália, como os Vermentinos da Ligúria e Toscânia, ou o Verdicchio das Marcas. E sem esquecer-me do romaníssimo Frascati, desde que seja dos produtores sérios, não o industrial e ralo elaborado para matar a sede dos milhares de turistas que invadem a “cidade eterna”. 

Do outro lado do Adriático, as favas também encontram espaço nas “mezes” e em pratos gregos. Refogadas em bom azeite, perfumadas com muito hortelã fresco e adornadas com um contrastante queijo salgado, o nacional feta ou o cipriota halloumi, concorrem para uma efusiva salada primaveril. Não seria nenhuma tragédia grega acompanhá-la com um Malagousiá, casta que entrega quer na Grécia central como no Peloponeso, um branco mais frutado e herbal do que os espetaculares, mas muito minerais e cortantes, Assyrticos de Santorini.

 

FAVAS EM PORTUGAL

Como um apaixonado por favas e sommelier itinerante, cabe-me confessar que não conheço um país no mundo que revele um cabedal tão vasto e arrebatador de receitas com estas leguminosas como o nosso Portugal. Das inúmeras versões de saladas com favas, muitas delas com coentros, dos cremes, sopas e esparregados, acompanhando diversos pescados e inclusive o bacalhau, guisadas com tantas partes do porco, com caças, enchidos e ovos escalfados, ou no arroz, há favas para todos os gostos e vinhos possíveis. 

Para este artigo resolvi levar em conta as duas formas mais tradicionais de apreciar as favas por aqui: muito precoces, semi-maduras, consumidas cruas apenas com flor de sal, azeite ou manteiga; ou então mais maduras, num fumegante guisado com toucinho, chouriço, morcela e entrecosto, vinho branco, cebola, alho e coentros.

CARACTERÍSTICAS PARA HARMONIZAÇÃO

Uma das razões pelas quais as favas constituíram-se como esteio alimentar de diversos povos antigos é o seu altíssimo valor nutricional, que alegadamente não era conhecido na época em termos químicos e quantitativos, mas pela sensação de fastio que elas proporcionavam. Seu riquíssimo conteúdo de proteínas, fibras, vitaminas e amido matam a fome do corpo e da alma. E o seu baixíssimo conteúdo de lipídios fazem das favas um alimento de grande valor, sem falar ainda no seu sabor!

Quando adicionamos uma camada hedonista às favas, o que era bom fica excecional. A película externa envolve um recheio com intenso sabor verde, de natureza, florestal, herbal, de clorofila, terroso e ao mesmo tempo adocicado, amiláceo, amanteigado, amendoado. Um travo amargo delicioso e característico surge no meio-de-boca e prolonga nas sensações finais. A maior parte deste amargor está no “fato” dos grãos de fava. E a decisão de descascá-las influencia totalmente no resultado final da harmonização.

TENDÊNCIA AO AMARGOR

O amargo é um dos cinco sabores fundamentais, se incluirmos o umami do Oriente. Nascemos a gostar apenas do doce, que sinaliza calorias, e do umami, que sinaliza proteínas, consequentemente energia e crescimento. Aprendemos a gostar do sal, do ácido e finalmente do amargo, este último a marcar alimentos não maduros ou mesmo tóxicos, com passar do tempo. Segundo o livro do Dr. Jamie Goode “I Taste Red, The Science of Tasting Wine”, ao contrário do que era divulgado até hoje, o amargo é captado pelos nossos receptores de sabor, os botões gustativos, espalhados por toda a língua e palato, e não apenas nas papilas circunvaladas concentradas na base posterior da língua. Ingredientes ou receitas com um ligeiro toque amargo, ou tendência ao amargor, são perfeitamente plausíveis de engendrar excelentes harmonizações com vinhos caracterizados por um equilíbrio pendente para a balança da maciez, em detrimento da dureza. Isso porque a tendência ao amargor, tal como a tendência ácida ou o sapidez, são elementos de dureza nos alimentos, que devem se contrapor, ou serem tamponados, por elementos de maciez nos vinhos: a saber a sua riqueza de fruta, álcool, glicerina ou açúcares residuais, este quando for o caso.

Ingredientes como as favas, sobretudo se não forem descascadas, e também a alcachofra, chicória, radicchio, endívia, rúcula, fígado e chocolate negro; ou métodos de cozedura como: na brasa com carvão e uma consequente carbonização da crosta; ou cozimentos muito longos com determinadas especiarias, carregam ou reforçam uma tendência ao amargor. O efeito desta tendência é evidenciar sinergicamente todos os elementos de dureza do vinho candidato à harmonização. A acidez, a sapidez mineral, e a adstringência dos taninos tendem a pular para fora do equilíbrio quando chocam-se com alimentos amargos. Se os vinhos trouxerem algum amargor além da adstringência então, desastre enogastronômico garantido. 

Em resumo, após respeitar a primeira regra de harmonização, que é o regular o nível de estrutura do vinho com o nível de estrutura do prato, temos que encontrar vinhos que respeitem o delicioso, mas sempre presente, travo amargo das favas. Vinhos que carreguem maciez de fruta e álcool, e sem arestas de dureza, taninos e ácidos, protuberantes.

O COENTRO AMIGO

Tal como as favas, o coentro caracteriza-se pelos seus aromas frescos, florestais, de terra molhada. Outros apontamentos refrescantes, anisados, de mentol e casca de cítricos, casam divinalmente com as favas: parece que os aromas de um continuam no outro. Não estranhamente, o coentro é um fiel escudeiro das favas em diversas receitas em Portugal e no mundo. 

Do ponto de vista aromático, há uma série de castas portuguesas e estrangeiras que carregam estes compostos voláteis anisados/mentolados: anetol, mentol, estragol, eugenol, etc. e podem gerar bons namoros ou casamentos. A Alvarinho, a Arinto, a Sauvignon Blanc, a Verdejo são algumas das brancas, e o Rufete, a Trincadeira, a Syrah, a Grenache algumas das tintas para se ter em mente.

TESTES

Em uma semana de testes, provei algumas dezenas de vinhos com as favas cruas ao natural e com as favas guisadas à portuguesa. Além de ter certeza absoluta que não sofro de favismo, pude regozijar-me com estas leguminosas sensacionais e afinar a minha opinião técnica sobre os vinhos que melhor casam com elas. 

A primeira regra da harmonização, que é a calibragem de estrutura para que vinho e alimento tenham o mesmo volume, peso e carga aromática, garantiu que para as favas cruas, vinhos brancos e rosés funcionassem muito bem. Menor peso na mesa, menor peso no copo. Muito importante, como discutimos anteriormente, é trazer vinhos que equilibrem para a maciez da fruta, consequência usual de situações climáticas menos frias, para amortecermos a tendência ao amargor das favas. Prefira então um Alvarinho mais maduro e untuoso do que um muito mineral e tenso. Ou um Loureiro de vinhas velhas, mais rico e perfumado, do que um muito jovem, afiado e nervoso. Brancos e rosés do Mediterrâneo, mais macios e ensolarados, irão casar maravilhosamente bem com as favas cruas e com a chegada das estações mais quentes e luminosas.

Com as favas guisadas à portuguesa, todavia, o aporte de estrutura dado ao prato pelo toucinho, enchidos e entrecosto, além dos condimentos, obriga-nos a colocar mais peso na balança da estrutura do lado do vinho. Brancos muito ricos, rosés de carácter e tintos passam a ser as escolhas corretas para este clássico fabuloso da cozinha portuguesa. Sempre com a condicionante da maciez acima da dureza na balança do equilíbrio do vinho nubente. 

Os tintos muito estruturados e tânicos que provei durante os meus testes fracassaram no confronto com as favas: um grande Bairrada com os taninos firmes da Baga teve todo o seu lado da dureza fortemente evidenciado pelo amargor das favas, ficando demasiado duro e intransigente. Um grande alentejano que era equilibradíssimo antes de ir à mesa tornou-se taciturno, prejudicando a sua riqueza de fruta e a sua tipicidade.

Sagraram-se campeões um tinto muito fresco de Rufete da Beira Interior, um alentejano de altitude com base na Trincadeira, e uma Barbera com taninos muito resolvidos e marcada frescura do Piemonte. Todos eles vinhos de estrutura condizente com o prato, taninos sutis e pouco adstringentes que não saltaram para fora do equilíbrio no confronto com o amargo, e, finalmente, frescura agradável a contrapor à doçura amilácea das favas e à gordura sólida dos enchidos de porco. 

Uma última consideração, já que estamos neste número da Revista de Vinhos a provar os Claretes e Palhetes de Portugal. Estes vinhos primaveris entre os brancos, rosés e tintos também possuem todos os atributos para casaram perfeitamente com diversas receitas de favas. Faça os testes enogastronômicos como este sommelier, pois “favas me fartam, favas me matam de prazer” quando o assunto é harmonizar vinho-alimento.


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