Harmonização de Vinho e Ostra

Nada pode parecer mais perfeito do que uma cintilante taça de Champagne (ou de outro bom espumante) a escoltar uma sedutora ostra aberta no momento. Esta imagem elegante e estimulante nos inspira e nos faz sonhar, o que por si só já atesta o êxito - ainda que relativo - desta clássica harmonização vinho-alimento.

Como enogastrônomo profissional, acho interessante revelar, todavia, outras facetas do casamento vinho e ostras, para podermos abrir mais o nosso leque de escolhas. A harmonização de Champagne ou espumantes com ostras é entendida pelos sommeliers como uma “harmonização tradicional” ou “harmonização psicológica”, pois ao invés de assentar-se sobre critérios técnicos, recai sobre o aspecto emocional do degustador. Dada a vocação sensual desta tipologia de vinho e do alimento em questão, aprecia-se incondicionalmente a interação entre os dois. Do ponto de vista da tradição, há muitos anos, provavelmente desde a inauguração das grandes maisons de champagne no início do séc. XVIII, a nobreza refestela-se com ostras e champagnes, casamento que hoje se tornou mais acessível com a elaboração de bons espumantes em várias partes do mundo e com o cultivo profissional das ostras.

Do ponto de vista técnico, entretanto, esta harmonização tradicional ou psicológica apresenta contradições bastante fortes, as quais explicaremos a seguir. Ao colocarmos uma ostra fresca na boca, as sensações táteis e gusto-olfativas predominantes serão: 1. suculência: intrínseca da própria ostra e induzida pela mastigação; 2. sapidez: salinidade marinha intensa a conferir uma sensação saporífera de dureza; 3. baixíssima percepção de gordura sólida, nenhuma de untuosidade; 4. aromaticidade de média intensidade; 5. média percepção de amargor e alta percepção de iodo. Não é difícil perceber que os Champagnes ou espumantes se caracterizam pelo frescor da sua acidez (uvas menos maduras cultivadas em climas marginalmente mais frios) e pela presença de gás carbônico natural, que por sua vez acentua as sensações do lado da dureza no equilíbrio do vinho (acidez e sapidez) e atenua as sensações do lado da maciez (doçura, álcool e maciez glicérica). Quando degustamos ostras com Champagnes ou espumantes, temos um conúbio conflitivo de realce sinérgico da dureza, além de excesso de suculência na cavidade bucal. Isto porque a alta sapidez das ostras é potencializada pelo impacto ácido do espumante, tudo ainda exponenciado pela pungência do gás carbônico, sem haver no alimento uma “almofada” de maciez (lipídios sólidos e tendência ao doce) para uma justa contraposição. Além do mais, a suculência do molusco não é enxugada pelo álcool e/ou taninos do vinho, muito antes pelo contrário, o Champagne/espumante induz uma forte salivação. Concluindo, estamos a dar dureza à dureza e suculência à suculência, não esquecendo-se que, transpondo o universo técnico, essa é uma das harmonizações mais apreciadas e praticadas em todo mundo!

De volta à técnica enogastronômica, que tipo de vinho poderíamos então trabalhar com as ostras in natura? Precisaríamos em primeiro lugar de vinhos brancos, pois com o alto teor de iodo existente, escolher vinhos tintos com taninos seria como lamber um poste de luz enferrujado! Pelo mesmo motivo de metalização dos polifenóis evita-se os brancos envelhecidos em carvalho (aporte de polifenóis elágicos). Como vimos, a discreta aromaticidade das ostras elimina brancos muito espalhafatosos, excessivamente frutados, florais ou amadeirados, que poderiam atropelar os delicados perfumes marinhos do nobre molusco. Moscatos, Malvasias, Gewürztraminers e Viogniers eloquentes, nem pensar!

Elegeríamos então vinhos brancos de estrutura leve a meio encorpada, com aromas delicados, mais para contidos do que para exuberantes, dotados de delicada chancela mineral-marinha, acidez agradável mas não predominante (para não causarmos o realce sinérgico de dureza), e uma equilibrada maciez alcoólica e glicérica, suficiente para amortecer o “assalto” salino das ostras e enxugar os sucos presentes na boca. Nessa descrição encontramos dois clássicos franceses largamente empregados nos bistrots que servem suculentas Ostrea edulis ou Crassostrea gigas aos seus clientes: os Chablis da categoria villages (os premiers crus e grand crus são muito minerais, ácidos e potentes para tanto) e os Muscadets do Loire. Quando visitei uma fazenda de ostreicultura de alto prestígio na laguna Étang de Thau no Languedoc, a Tarbouriech, fiquei abismado com a perfeita harmonização daquelas incríveis ostras de Bouzigues com o branco local Picpoul de Pinet, o qual preenchia com louvor aqueles preceitos: fruta contida, acidez não-cortante, álcool médio-alto, um perfeito trampolim para os delicados sabores minerais dos moluscos! Um Greco di Tufo da Campania na Itália e um Assyrtico da ilha de Santorini são outros parceiros incontornáveis das ostras. Felizmente, em Portugal há um mar de vinhos perfeitos para mergulharmos com as ostras frescas. Adoro harmonizá-las com um simples Arinto de Bucelas, impossível sair-se mal com esta escolha. Um Terrantez dos Açores, da Azores Wine Company, faz-nos comer uma dúzia a mais do que o planejado.  Um Alvarinho tenso e mineral como os da Cortinha Velha ou um marítimo Viosinho da Adega Mãe de Lisboa engrossam uma lista gigantesca de brancos portugueses amigos das ostras. Mas se ainda preferir o seu tradicional espumante, felizmente a enogastronomia é uma ciência que quando transgredida, possivelmente o matará apenas de prazer!


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