Vinho e azeite

Azeite...

Antes de tudo, por favor, confira a nossa bela seleção de azeites

O azeite de oliva é realmente um óleo sem igual, mágico, divino. Acompanha o homem desde tempos imemoriais, mas quando as oliveiras chegaram na Bacia do Mediterrâneo vindas da Ásia Menor, há aproximadamente 6.000 anos, o perfumado óleo da sua drupa passou a ser o fluido que lubrificou o motor de todas as civilizações no seu entorno. Insubstituível no regime alimentar mediterrânico, o azeite de oliva transcendeu o papel alimentar em sua longa história, transmutando-se em remédio, combustível ou em elemento incontornável de cerimônias e rituais de diversas religiões.

Mas é na mesa que o óleo das espetaculares árvores de folhas verde-prata sublima-se, pelo menos para nós, enogastrônomos inveterados. Sempre ao lado das videiras no seu habitat preferido, a oliveira e os grãos formavam o trinômio do Mediterrâneo, e não por acaso que estas três maravilhas da natureza trabalhadas pela engenhosidade humana -  vinho, azeite e pão - propiciem um conúbio dos Deuses quando estão juntos.

Azeite em harmonia

Conhecendo um pouco da técnica de harmonização vinho-alimento, todavia, é possível ampliarmos e refinarmos o nosso leque de escolhas, sem nos esquecermos que um simples pão embebido do óleo dourado, sorvido com um belo gole de vinho costuma resultar de alguma forma, quase nunca chega a haver um divórcio litigioso nesse casamento.

Tenho visto recentemente alguns esforços em buscar a harmonia entre azeites e vinhos pela afinidade entre o perfil aromático do óleo com o perfil aromático do branco ou tinto em questão. Algo como sugerir um azeite de estilo pungente, herbáceo e picante com um Sauvignon Blanc de clima frio, com seus aromas herbáceos das metoxi-pirazinas e sua mordaz acidez. Ou um azeite mais maduro, denso e frutado com um tinto com este perfil, um alentejano se trouxermos a sugestão para Portugal.

Também é muito comum encontrarmos nas pesquisas sobre “azeite + vinho” sugestões de vinhos, independentemente da sua cor, que tenham no palato um equilíbrio governado pela acidez, pois “acidez limpa gordura”.

Sem desmerecer essas opiniões cada vez mais comuns, penso que seria importante nesta altura propormos uma outra maneira de tratarmos o azeite de oliva para fins de harmonização, de forma que também possa ser testada e discutida. 

Entendendo os parâmetros essenciais do azeite

Primeiramente, vamos analisar com brevidade as suas características fundamentais. O azeite de oliva é um óleo vegetal composto principalmente de triglicerídeos (esterificação de 3 moléculas de ácidos graxos livres com uma de glicerol) monoinsaturados e de cadeias não muito longas, o que garante o seu estado líquido à temperatura ambiente, além de pequenas quantidades de ácidos graxos livres, glicerol, compostos de sabor, polifenóis, esteróis, etc. Esta pequena fração não lipídica do azeite, algo que aproxima dos 2% da sua composição, é importante do ponto de vista organoléptico, ou seja na cor, aroma e sabor, e também do ponto de vista químico, ao proteger o óleo da oxidação. Em termos de aromas, os aldeídos como o hexanal desempenham um papel de protagonismo, marcando seu caráter “verde” de folhas de tomate, alcachofras, relva recém-cortada, etc.; ao passo que os ésteres imputam as notas frutadas como as de maçã-verde. 

Em relação à acidez dos azeites, cabe aqui uma ressalva importantíssima. Na Itália assisti uma aula de um analista sensorial de azeites e depois pude acompanhar a produção tradicional em um “frantoio” típico na região da Toscana. Para mim foi uma surpresa naquela altura aprender que a acidez de um azeite não é degustada por estes profissionais, porque simplesmente está abaixo dos nossos limiares de percepção. Ou seja, a acidez natural de um azeite de oliva expressa em ácido oleico livre - não esterificado - nada mais é do que um parâmetro técnico de pureza de um azeite extra virgem, mensurado em uma análise de laboratório. Contudo, um óleo de oliva industrial, altamente refinado, pode também ter uma acidez abaixo dos 0,5%, lograda no seu processo químico de produção. Em resumo, a acidez de um azeite de oliva não deve ser levada em conta quando falamos de suas qualidades organolépticas e consequentemente quando falamos de seu casamento com o vinho. Comprar um azeite pela acidez percentual seria algo como comprar um vinho somente pelo seu teor alcoólico, não haveria nestes casos alguma garantia da qualidade final do produto.

No entanto, um parâmetro sensorial que deve sim ser levado em conta para fins de valorização qualitativa do óleo e para a sua harmonização é o seu teor de amargor e de picante. Tudo depende do cultivar (variedade da azeitona), do terroir e também da forma de elaboração do azeite, mas com todas estas variáveis fixas, normalmente uma azeitona atinge seu ápice na carga de polifenóis um pouco antes do seu “pintor”, quando começa a escurecer seu epicarpo. São estes polifenóis e alguns glicosídeos que conferem ao óleo sua agradável pegada adstringente, amarga e picante. Tão picante que às vezes faz-nos tossir quando provamos alguns azeites crus, ricos em agliconas, um glicosídeo comum em algumas cultivares de azeitonas.

Técnica da harmonização

Conforme discutido acima, o fato do azeite de oliva ser um óleo que se mantém no estado líquido quando vertido cru na finalização de pratos, e mais fluido ainda quando empregado durante diversos processos de cocção, inclusive na fritura por imersão, leva os sommeliers a tratarem-no como um aporte de untuosidade ao prato. Faz-se extremamente importante nesse momento a distinção entre o efeito dos óleos ou gorduras líquidos na cavidade bucal, os quais provocam uma sensação tátil escorregadia de untuosidade, e o efeito das gorduras sólidas como da manteiga, de um sashimi toro ou de um enchido de porco, cuja sensação tátil é de emplastramento ou pastosidade. Dessa forma, fica muito claro que temos que ser cautelosíssimos com asserções do tipo “acidez limpa gordura”. Qual gordura, líquida como o azeite ou gordura sólida? Se a gordura é líquida, temos que buscar no vinho elementos que enxuguem ou minimizem os efeitos desta untuosidade na boca. A acidez dominante no equilíbrio de um vinho induz a uma salivação intensa, ou seja, estamos aumentando a quantidade de líquidos na cavidade bucal, ao invés de diminuir. 

Felizmente, para enxugar a untuosidade que o azeite acarreta e tornar um prato generoso deste óleo dourado mais harmonioso e estimulante, dispomos de duas alternativas a considerar nos vinhos, que não a sua acidez: em primeiro lugar os taninos, e quando eles não foram uma boa opção, a alcoolicidade. Os taninos presentes nos vinhos tintos, e em escala muito menor em alguns brancos e “laranjas” estruturados e fenólicos, fomentam uma sensação tátil de adstringência em toda a boca, a saber, precipitam algumas proteínas como a mucina, responsáveis pela capacidade de lubrificação da nossa saliva. Pratos de cozimento longo que levam azeite e outras gorduras na preparação e na constituição dos seus ingredientes, gerando aquele molho próprio saborosíssimo e divinamente untuoso, escoltado por um poderoso tinto, firme, austero e adstringente, não soa espetacular esta harmonia? Uma chanfana de borrego com um grande Bairrada Garrafeira, magnífico exemplo. Seus taninos combatem a untuosidade do prato e em contrapartida a untuosidade amortece a aspereza dos taninos, neste caso 1 + 1 = 3.

Todavia, nem sempre podemos servir-nos dos taninos para harmonizar com pratos embebidos da fluida untuosidade do azeite de oliva. Um tinto tânico com um bacalhau à Lagareiro pode metalizar-se no confronto com os sabores marinhos iodados concentrados pelo processo de salga do peixe. Nem pensar neste estilo poderoso de vinho tinto para enxugar saladas, peixes grelhados no carvão com um merecido fio de óleo, e outras iguarias delicadas. Neste caso dispomos de um outro expediente para contrapor à untuosidade, ainda que não tão eficiente como a carga tânica dos tintos: o álcool etílico. O principal produto da fermentação dos açucares do mosto, o etanol, possui uma parte apolar na sua cadeia molecular, tal como as gorduras, que nele são solúveis e, por isso, passíveis de serem limpas. De volta ao bacalhau à Lagareiro, servido num mar fumegante de bom azeite, apetece-me muito sugerir um casamento especial com algum robusto Encruzado do Dão, de destacada carga alcoólica (preferencialmente acima dos 14ºGL), mas de discreta ou nenhuma presença de madeira e de seus aportes de taninos elágicos.

Em conclusão, mitigar a untuosidade que o azeite de oliva confere às preparações culinárias é o ponto fulcral para lograrmos um conúbio enogastronômico feliz, e isso pode ser trabalhado através da carga tânica ou alcoólica do vinho. Em segundo lugar, é aconselhável termos alguma atenção com os azeites muito ricos em polifenóis, e por isso tendenciosamente mais amargos, adstringentes e picantes, como um deliciosamente pungente Verdeal transmontano. Estas sensações de dureza poderiam chocar-se com e realçarem sinergicamente os taninos de um tinto, mas, felizmente, como estes azeites mais herbáceos e picantes são mormente empregados na finalização de saladas, pratos mais delicados com legumes, sopas e pescados, para os quais devemos empregar vinhos brancos e sua alcoolicidade contra a untuosidade, este risco é minimizado. Finalmente, os aromas do azeite assumem assim um papel acessório na harmonização vinho-óleo de oliva. Logicamente ajustes de sintonia fina com vinhos que apresentem um perfil aromático coerente com o azeite em questão, mais para o lado frutado, ou mais para o herbáceo ou para o especiado, são bem-vindos, ainda que seja fundamental considerar o perfil aromático final do prato, e não apenas do azeite empregado.


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