Como harmonizar vinho e enguia?

Guilherme Corrêa Dip WSET

As enguias são exatamente o contrário dos salmões, na vida e na mesa. Passam a vida nos rios e descem para o mar para desovarem. E na harmonização com os vinhos, adoram os tintos com taninos. 

UM PEIXE MISTERIOSO

O termo cunhado a partir do grego para classificar peixes com este comportamento, catádromo, κατά kata, "baixo" e δρόμος dromos, "curso" bem define um dos maiores mistérios estudados pela ictiologia, a migração das enguias europeias Anguilla anguilla dos rios de água doce ou salobra para o longínquo Mar dos Sargaços, para a reprodução. Esse incrível animal vive em média por 15 anos os machos e 20 anos as fêmeas, em águas continentais doces, quando é conhecido por enguia amarela, e assim que atinge a maturidade sexual, transforma-se paulatinamente em “enguia-prateada” no oceano, chegando a percorrer entre 5 e 6 mil quilômetros até atingir as profundidades do mar dos Sargaços, no meio do Atlântico Norte, onde desova e morre. As suas larvas ou leptocéfalos voltam para a costa europeia levadas pela corrente do Golfo por longos meses ou até 3 ou mais anos. Na chegada se metamorfoseiam na enguia-de-vidro ou meixão, transparentes e brilhantes, com aproximadamente 8 centímetros de comprimento. Assim entra nos estuários para colonizar novamente os rios e lagos da Europa. Nessa fase ganha peso e pigmentação e passa a ser denominado de “elver” ou juvenil, até crescer e transformar-se finalmente na famosa - e apetitosa - enguia amarela. Depois já sabemos o que acontece, mas não exatamente o porquê: migra de volta para o Sargaços, reproduz e termina seu ciclo, às vezes com décadas de vida. 

Gastronomicamente falando, é na fase preliminar dos meixões e depois na fase das enguias amarelas, adultas de água doce, que o misterioso peixe encanta os paladares mais refinados e aventureiros.

Infelizmente, e mais ainda para nós gastrônomos, as populações de enguia europeia estão seriamente ameaçadas de extinção com severas restrições à sua pesca, uma antiga tradição em diversos países europeus. Na fase do meixão, quando um mero quilo chega a valer mais de mil Euros no mercado, a tentação do lucro é enorme, com inúmeras apreensões ilegais, inclusive em Portugal.

ENGUIAS NA MESA

Entre as iguarias mais espetaculares que já provei na vida como um sommelier viajante, colocaria as “angulas a la bilbaína” - os verdadeiros meixões, não um sucedâneo econômico à base de peixe chamado de “gulas” - simplesmente refogadas em panelinhas de barro com azeite de oliva, alho e pimentas malaguetas frescas, servidas com garfinhos de pau para evitar alterações de sabor. Na Espanha é cada vez mais cara e rara esta entrada, na verdade uma porta ao paraíso. Quando vivi na Toscana, tive a oportunidade de apreciar as “cee”, em acento toscano, ou “cieche” em italiano, hoje totalmente proibidas de se pescar em todo o país. Na receita típica de Viareggio são refogadas também em “aglio e olio”, com a diferença de agregarem uma noz de manteiga, folhas frescas de sálvia e um toque opcional de vinho branco. Lembro-me de outra experiência divinal com os meixões em Itália, quando um chef napolitano nos preparou uns bolinhos deles com ovos, alho e farinha e fritou-os em imersão. Coisa do outro mundo! 

As enguias amarelas adultas são louvadas em praticamente todos os países ocidentais europeus, do Mediterrâneo ao Báltico, com inúmeras receitas locais. E cada vez mais apreciadas e exportadas para a Ásia, com os consequentes danos do seu consumo excessivo a ameaçar a perpetuação da espécie. Fritas, ou em conservas com vinagre, ervas e especiarias diversas, ou assadas na brasa, ou cozidas em úmido, ou mesmo defumadas, os resultados podem ser excepcionais. Na Itália, é praxe servir a fêmea adulta (maior do que macho e podendo atingir 1,50 metros de comprimento), o “capitone”, na noite da consoada. Há mesmo a saga “del capitone” em alguns vilarejos italianos, como em Comacchio na Emilia-Romagna, onde ela é servida na brasa “ai ferri”, no risotto, na massa, no “brodetto” em úmido, marinada, etc.

No entanto, é possivelmente na cozinha asiática onde a enguia amarela é cada vez mais apreciada e largamente consumida, incluindo aí a ameaçada enguia europeia. Como a “unagi” da cozinha japonesa, deliciosamente grelhada e glaçada com molho “tare”, a enguia revela sua incomparável textura rica, gordurosa e seus sabores terrosos e profundos. 

EM PORTUGAL

Um dos destinos preferidos dos leptocéfalos quando chegam no continente europeu, a costa portuguesa - com seus diversos, rios, rias e estuários - é uma das mais abençoadas pela presença dos metamorfoseados meixões e das adultas enguias amarelas. Na ria de Aveiro há uma forte tradição de captura das enguias, um ex-libris dessa ria que fomentou o turismo gastronômico e também a indústria conserveira da região. Tal como em outras zonas do país, diversas receitas típicas valorizam este peixe sem igual. Na vila da Murtosa, por exemplo, entre tantas outras formas apuradas pelo tempo de servir as enguias, a caldeirada destaca-se pela sua incrível riqueza e harmonia dos ingredientes, cozidos em camadas intercalados com os pedaços do nosso peixe protagonista: batatas, cebolas, açafrão-da-índia, louro e unto de porco, sempre com um toque de vinagre no final.

VINHOS QUE RESULTAM

Quando chega o momento de desarrolhar vinhos para uma impecável harmonização, um aspecto fundamental deve guiar as nossas escolhas: não há peixe mais gordo que as enguias. É bom lembrar que as enguias amarelas devem acumular na água doce toda a energia que precisarão, em forma de gordura, para a migração posterior como enguias-prateadas, nadando sem se alimentar por 5 ou 6 mil quilômetros até o mar dos Sargaços. Haja gordura! Ela pode responder por 25% da carne. Por sorte são os bons óleos de peixe, ricos em ômega 3. Mas eles não deixam de impor as suas exigências, quando formos escolher os vinhos.

Com os fabulosos meixões, cada vez mais impossíveis de se achar e de se pagar por eles, brancos marinhos, mais austeros na fruta para não chocarem com os delicados sabores da iguaria, dotados de agradável frescura fazem um belo casamento, como os Alvarinhos não muito exuberantes e seus parentes espanhóis das Rías Baixas, vinhos mediterrâneos da Itália como o Vermentino ou Verdicchio, etc.

Quando defrontarmos com as enguias amarelas, contudo, carregadas de gordura armazenada, temos que definir uma estratégia de harmonização com base na técnica de cozimento do peixe. Esta influenciará no modo em que a gordura predominará no prato: como gordura sólida entremeada na carne, ou como untuosidade no líquido de cocção. 

A gordura sólida causa uma sensação tátil de emplastramento ou pastosidade, e neste caso, nada melhor do que a presença de acidez no vinho a induzir uma salivação intensa, fundamental para emulsionar a gordura e facilitar a sua limpeza do palato. A sapidez do vinho e a presença de gás carbônico também atuam positivamente neste sentido. Deste modo fica claro que a nossa escolha para receitas em que a gordura da enguia permanece na sua carne, vinhos espumantes (brancos, rosados ou mesmo tintos), ou brancos e rosados dotados de muita frescura, além de alguns tintos ácidos leves ou de médio corpo, seriam os candidatos ideias para o casamento. As enguias fritas, por exemplo, ficam espetaculares com brancos do Minho de bom caráter, com alta acidez e um toque de agulha carbônica. Não podemos nos esquecer nunca do nível de sabor do peixe, de moderado a intenso, para não infringirmos a primeira regra de harmonização: o mesmo nível de aromas/sabores no vinho e no prato. No Loire os sommeliers franceses gostam de propor um Vouvray ou Savennières, cheios da acidez da casta Chenin Blanc, com enguias fritas ou defumadas. Um belo Champagne também faria as honras com louvor neste caso. Com as fabulosas defumadas, os Rieslings eletrizantes e fumados na mineralidade funcionam deveras bem. Com as “anguilla ai ferri di Comacchio” ou simplesmente grelhadas abertas na brasa, os locais servem-nos um tinto frisante de arrebatadora frescura, um Bosco Eliceo DOC da casta Fortana. O facto das enguias amarelas estarem na fase continental e não na oceânica da espécie, faz com que sejam relativamente pobres em iodo (4mg contra mais de 70mg do salmão), o qual tende a se chocar com os taninos dos vinhos tintos. Por isso mesmo, e também pelo sabor deliciosamente terroso das enguias, vinhos tintos se encaixam bem. No caso das enguias “unagi”, ricas em gordura sólida e com a assertiva cobertura do molho “tare”, cabem tintos poderosos, macios e com bela acidez, como alguns alentejanos vibrantes e não muito tânicos de Portalegre, alguns Malbecs de altitude argentinos, ou mesmo um elegante Amarone della Valpolicella. 

Muitas receitas de enguia não levam um “choro” de vinagre para cortar a sensação gordurosa do animal, como nas conservas e escabeches? Lembremos disso então, acidez nos vinhos para emulsionar a gordura sólida das enguias.

Por outro lado, em preparos de “tacho” ou cozimento longo, as gorduras da enguia liquefazem-se e dispersam-se no líquido de cocção. Cria-se um riquíssimo caldinho de muito sabor e untuosidade, como nas caldeiradas de enguia, arroz ou risotto de enguia, enguias estufadas com vinho tinto, etc. Neste caso, temos o predomínio do efeito dos óleos ou gorduras líquidos na cavidade bucal, os quais provocam uma sensação tátil escorregadia de untuosidade. Temos que buscar no vinho elementos que enxuguem ou minimizem os efeitos desta untuosidade na boca, a saber: os seus taninos, ou quando um vinho tinto não for a escolha, o álcool. Ao contrário dos anádromos salmões que sobem os rios para reproduzirem e encerrarem seu ciclo vital, as enguias adoram os vinhos tintos, e em preparos untuosos de “tacho”, até os tintos mais tânicos. Em França, por exemplo, as “anguilles en matelote” estufadas com vinho tinto são tradicionalmente escoltadas por tintos do Loire: Sancerre Rouge, Chinon ou Saumur-Champigny. 

TESTE

Preparei um guisado de enguias para extrair a sua deliciosa untuosidade e ali cozinhei um arroz no ponto malandrinho. Servi com um dos melhores Albariños de Espanha, dotado de um bom poder alcoólico, ao lado de um grande tinto da região de Lisboa, com seus típicos taninos de clima marítimo. A ideia era perceber se somente o álcool do vinho branco daria conta de enxugar a untuosidade do prato e também se haveria eufonia entre as notas do prato e do vinho. Embora o branco tenha proporcionado uma harmonização prazerosa, o tinto de Lisboa ficou absolutamente incrível com o arroz de enguias. Os taninos limparam melhor a untuosidade e ela por sua vez amorteceu o impacto dos polifenóis do vinho. O inter-relação dos sabores terrosos da enguia com o tinto marítimo causaram-me emoção e impulsionaram-me a pensar nesse lindo e misterioso animal que vive e sabe a mar e terra. 


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