O despertar de Fixin: A Nova Era de Berthaut-Gerbet na Borgonha

“Fixin é a minha alma.” — Amélie Berthaut

A Borgonha vive hoje uma das suas fases mais emocionantes. Se o século XX foi dominado por nomes consagrados, o século XXI está a assistir ao surgimento de uma nova aristocracia vínica, onde talento, autenticidade e terroirs negligenciados se reúnem com uma intensidade rara. No epicentro desta revolução silenciosa está Amélie Berthaut, herdeira de dois legados poderosos — Berthaut (Fixin) e Gerbet (Vosne-Romanée) — que consolidou num dos domaines mais emocionantes da atualidade: o Domaine Berthaut-Gerbet.

Visitámos o domaine na companhia de Steen Öhman (Winehog), cuja profundidade de análise trouxe outra camada de brilho à conversa. A degustação foi técnica, apaixonada e, por vezes, emocional. Sobretudo ao provarmos os vinhos de Fixin, claramente subestimados por décadas — mas aqui, renascidos com graça e carácter.


História: Sete Gerações, Dois Legados, Um Destino

A história da família Berthaut em Fixin remonta a finais do século XVIII, e o enraizamento da família na região é tão profundo como os solos que cultivam. Ao longo das gerações — desde François Berthaut (1780-1873) até ao avô Guy, que começou a engarrafar após a Segunda Guerra Mundial — o domaine manteve-se fiel a Fixin.

Em 2013, com a entrada de Amélie, nascia o Domaine Berthaut-Gerbet, combinando as vinhas da família paterna em Fixin e Gevrey, com parcelas herdadas da mãe, Marie-Andrée Gerbet, em Vosne-Romanée. Ao seu lado, o marido Nicolas Faure, com experiência em nomes lendários como DRC e Prieuré-Roch, assumiu a viticultura com um rigor quase monástico.


Os Terroirs: Fixin como Centro Emocional e Filosófico

Em Borgonha, terroir é destino. E Amélie defende os seus com orgulho raro. A sua devoção por Fixin, sobretudo, é notável. Um território tantas vezes subestimado, mas que, como escreveram Danguy & Aubertin (1896), produzia vinhos ao nível de Clos Saint-Jacques. Nos séculos XIX e XX, Fixin perdeu protagonismo, mas a nova geração começa a corrigir essa injustiça histórica — e o Domaine Berthaut-Gerbet lidera esse movimento.

📌 Alguns destaques de Fixin:

  • Fixin Village – Um blend de cinco lieux-dits, com solos de marga e argila. Elegância clássica, textura, estrutura e frescura.

  • Fixin En Combe Roy – Um enclave singular que Amélie chama de “mon bébé”. Um terroir com história geológica intrigante e performance digna de Premier Cru.

  • Fixin 1er Cru Les Hervelets – Um vinhedo de altitude, com solos pobres e calcários, trabalhado com 100% de engaço. Um dos vinhos mais verticais do domaine.

Fixin Village

O Fixin Village de Amélie Berthaut provém de quatro lieux-dits distintos, com uma média de 40 anos de idade das vinhas:

  • Fixey (0,87 ha): Localizado a leste da aldeia de Fixey, sobre margas arenosas e, na parte superior, calcário crinoidal. Solos profundos (50–100 cm), argilosos, mas com presença significativa de silte e areia.

  • Le Village (0,5 ha): Parcela adjacente ao Entre Deux Velles. Tal como as demais, o solo é profundo, argilo-arenoso e moderadamente calcário.

  • Le Pré (0,5 ha): Situado dentro da aldeia, cercado por habitações, com solos semelhantes aos anteriores.

  • La Sorgentière e La Vionne (0,7 ha combinados): Solo mais raso (20–50 cm), composto por areia argilosa e silto-argilosa, com substrato de oólito branco e conglomerado salmão.

Estilo do Vinho

Apesar da predominância de argilas, a elegância do vinho resulta da influência do silte e da areia. A vinificação respeita essa delicadeza: mínima inclusão de engaço, extração suave e estágio breve em barricas usadas (1 ano), seguido por 2 meses em foudre. Resultado: um Fixin Village luminoso, frutado e refinado — uma das grandes pechinchas da Côte de Nuits.

Fixin "En Combe Roy"

O detalhe técnico e emocional de En Combe Roy, por exemplo, merece um estudo à parte: localizado abaixo de Les Arvelets, com solos profundos e drenagem complexa, foi classificado como “Deuxième Cuvée” em documentos de 1871 e 1920, sinalizando a sua nobreza.

Antes integrado no Fixin Village, este lieu-dit passou a ser vinificado separadamente por Amélie, que o chama carinhosamente de mon bébé. Situa-se entre 300 e 310 metros de altitude, numa suave encosta voltada a sudeste, separada dos premier crus Les Arvelets e Hervelets por uma falha geológica marcada por uma depressão de 2–3 metros. É, curiosamente, um enclave dentro do climat Entre Deux Velles.

Solos e Geologia

  • Solo profundo (>1 m), mais leve, com textura arenosa e boa drenagem superficial graças à areia, silte e cascalho.

  • Elevada capacidade de retenção hídrica nas camadas inferiores.

  • Rochas de tamanho médio são abundantes, mas os calhaus maiores são menos frequentes (~10%).

  • Cálcio fraco, com predominância de textura granular.

  • O subsolo é presumivelmente composto por margas arenosas ricas em cascalho, semelhantes às de Entre Deux Velles e da base de Les Arvelets.

Estilo do Vinho

Carnudo, rico em fruta com aromas complexos de frutos vermelhos, especiarias exóticas e notas salgadas. A textura é a sua assinatura: taninos integrados e sedosos desde o nascimento. A elegância do vinho não se deve à estrutura, mas sim à profundidade e harmonia dos seus elementos. O solo arenoso e o cascalho contribuem para a suavidade e nobreza da boca — uma das expressões texturais mais marcantes da adega.

Classificação Histórica

Documentos de 1920 e de Camille Rodier apontam En Combe Roy como Deuxième Cru (segunda classe), enquanto outras partes de Entre Deux Velles foram classificadas como terceira. A singularidade do terroir — a sua posição elevada sobre um domo, versus depressões circundantes — reforça esta distinção.

Les Hervelets vs. Les Arvelets

Originalmente um só climat, dividido após 1860. Ambos partilham a mesma geologia e exposição. Amélie possui vinhas jovens em ambos e recentemente começou a engarrafas os terroirs separadamente. 

Esse é premier cru mais a norte da Côte d’Or, com apenas 3,36 ha, entre 310–340 m de altitude. O Domaine Berthaut-Gerbet possui 0,96 ha, no centro da encosta, sobre um subsolo de calcário crinoidal e margas arenosas. As vinhas são plantadas transversalmente à encosta e têm cerca de 40 anos. 

Solos e Geologia

  • Terço superior: solos rasos (<40 cm), coluviais, altamente calcários com margas fossilíferas.

  • Parte média/inferior: solos mais profundos (>50 cm), argilosos e fracamente calcários, ricos em pedras e fósseis marinhos visíveis.

  • Substrato com quatro tipos de calcário jurássico: margas arenosas (base), calcário crinoidal (centro), calcário rosa de Premeaux (falha), e ostrea acuminata (topo).

Estilo do Vinho

Amélie explora este terroir com crescente precisão a cada vindima. Em 2014, o vinho lembrava Clos Saint-Jacques pela sua mineralidade e frutos vermelhos. Em 2016, mostra profundidade e força mais próxima de um Clos de Bèze — fruta mais escura, estrutura mais poderosa. A semelhança reside na sua “vontade interior”: um vinho que carrega seriedade, profundidade e firmeza.

Les Hervelets tende a expressar uma estrutura mais tensa, com maior frescura, graças à escolha de 100% de engaço e à elevada proporção de calcário ativo no solo. A ausência total de barrica nova preserva a pureza da fruta e a precisão mineral, ideal para quem aprecia um estilo mais cru e direto, com taninos vivos mas bem integrados. É um vinho de energia e definição, com maior nervo. Enquanto que Les Arvelets é amplo, estruturado, com volume e finesse. 


Gevrey, Vosne, Petits Monts — A Borgonha Clássica com Olhos Novos

Fora de Fixin, o domaine trabalha com vinhas em zonas míticas como:

  • Gevrey-Chambertin Les Crais & Burie: solos aluvionares que conferem estrutura e profundidade.

  • Vosne-Romanée Aux Réas & Rivière: vinhas antigas (algumas de 1935) que revelam o lado mais sensual e especiado do Pinot.

Vosne-Romanée 1er Cru Les Petits Monts

Elegância nas Alturas: a alma delicada de Vosne acima de Richebourg

Situado na parte alta da encosta de Vosne-Romanée, Les Petits Monts é um premier cru que vive na sombra — tanto geográfica quanto metafórica — do icónico Richebourg, seu vizinho de baixo. Mas essa posição elevada, longe de ser um obstáculo, é justamente o que confere ao climat a sua identidade inconfundível: terroso, especiado, perfumado — mas sem o peso ou a opulência dos grand crus.

Com apenas 3,6 hectares, este é um dos vinhedos mais altos e inclinados da Côte de Nuits, chegando aos 330 metros de altitude, plantado numa encosta virada a leste, sobre solos rasos de argila pedregosa rica em ferro, assente num substrato duro de calcário. As vinhas aqui lutam — o solo drena bem, os rendimentos são naturalmente baixos, e o resultado são uvas concentradas, cheias de tensão e nuance.

Localização e vizinhança ilustre

O climat está encaixado entre nomes lendários:

  • A norte, roça o mítico Cros Parantoux, eternizado por Henri Jayer.

  • A sul, corre paralelo a Aux Reignots, acima da minúscula La Romanée.

  • Logo abaixo, repousa o imponente Richebourg.

  • Mais acima, chega-se à floresta que coroa a Côte d'Or.

Esta localização privilegiada — no limite entre a viticultura e a natureza selvagem — oferece exposição solar matinal e um microclima ligeiramente mais fresco, ideal para uma maturação lenta e equilibrada.

Produtores de referência

Apesar da sua dimensão discreta, Les Petits Monts é produzido por nomes de peso:

  • Domaine de la Romanée-Conti (produção exclusiva para restaurantes franceses),

  • Comte Liger-Belair,

  • Amélie Berthaut

  • Domaine Felletig

Cada um imprime a sua leitura do terroir, mas o traço comum permanece: finesse, pureza aromática e uma espinha dorsal mineral que distingue este premier cru dos seus pares.

Perfil e Estilo desse incrível premier cru nas mãos de Amélie 

O 2023 mostra tudo o que torna este terroir único: leveza textural, frescura e uma fragrância especiada arrebatadora. Em comparação com os vinhos mais musculados de parcelas como Suchots ou Richebourg, Petits Monts revela finesse mais aérea, mais vertical e floral — uma espécie de silêncio elegante que ecoa fundo.

“The Petit Monts is one of my favourite wines from this estate… effortless and refined… hedonistic fruit and feel.”
— Steen Öhman, Winehog

“Even more ethereal than the Suchots... pure and elegant.”
— William Kelley, The Wine Advocate

“More energy to the fruit on the palate… red- and blackcurrant… very long finish with fine hillside freshness.”
— Jasper Morris MW, Inside Burgundy
★★★★☆ – 93–95 pontos

A disposição cruzada das vinhas, herdadas de gerações anteriores, permite diferentes exposições e maturações, algo que Amélie Berthaut aproveita com mão precisa e infusiva. Em anos quentes como 2023, a altitude e o solo pobre equilibram o calor e preservam a tensão natural — a colheita mostra-se como uma das melhores expressões deste climat na última década.


Filosofia: “Des vins de garde qui se boivent”

A expressão pode parecer paradoxal, mas descreve com precisão a estética de Amélie: vinhos com profundidade e capacidade de guarda, mas acessíveis e prazerosos desde cedo. Na colheita de 2023, segundo a Robert Parker Wine Advocate, esse equilíbrio atinge o ponto ideal: “supple and charming wines that will drink well pretty much on release.”

A vinificação respeita a integridade do terroir: leveduras indígenas, fermentação em betão, uso parcimonioso de engaço, mínima extração, e envelhecimento em barricas com baixo uso de madeira nova (0 a 30%).


Colheita 2023: Uma Safra para Iniciar

Estamos entusiasmados por ter, mesmo que em quantidade muito limitada, a colheita 2023 disponível:

  • Bourgogne Hautes Côtes de Nuits

  • Fixin

  • Fixin “En Combe Roy”

  • Fixin 1er Cru “Les Hervelets”

  • Gevrey-Chambertin

  • Vosne-Romanée

  • Vosne-Romanée 1er Cru “Les Petits Monts”

A safra 2023 expressa perfeitamente a nova filosofia do domaine: vinhos que encantam pela elegância, pureza aromática e estrutura refinada, com potencial de guarda, mas já sedutores no presente.

Impressões de Prova – Colheita 2023

(Prova realizada no domaine com Amélie Berthaut e Steen Öhman – Winehog)

Num ambiente íntimo, entre barricas e histórias, os vinhos de 2023 apresentaram-se com uma pureza e energia vibrante. A precisão aromática, a leveza firme e o equilíbrio táctil marcaram cada amostra — uma prova de que o estilo de Amélie está em plena maturação. Abaixo, nossas impressões, muito positivas - é claro -, e alguns comentários de destaque feitos por Steen: 

  • Bourgogne Hautes Côtes de Nuits 2023
    Muito perfumado, leve e preciso. Um Pinot de altitude, com ares florais e estrutura subtil, que surpreende pela delicadeza e definição.

“Lively and enjoyable with the 2023 freshness maintained.” – Steen, Winehog

  • Fixin 2023
    Aromático, especiado e fresco. Uma beleza leve com taninos esculpidos. Uma versão de Fixin que aposta na finesse sem sacrificar a identidade. 

“Lovely balance with drinkability as the main objective it seems.” – Steen, Winehog

  • Fixin "En Combe Roy" 2023
    A expressão mais terrosa, profunda e encantadora de Fixin: delicado mas suculento, de vinhas com 60 anos. Longo e luminoso, com final arrebatador.

“Rich and intense … almost on the velvety side. 60-year-old vines… deep fruit…” – Steen, Winehog

  • Fixin 1er Cru "Les Hervelets" 2023
    Vertical, aéreo, com fruta vermelha pura e uma clareza vibrante. Preferido por Steen nesta colheita entre os Premier Crus de Fixin. 

“The soil is lighter… fruit is more airy and redly toned. I clearly prefer Hervelets in 2023.” – Steen, Winehog

  • Gevrey-Chambertin 2023
    Exuberante frescura, maturação perfeita. Textura de pó de talco calcário, num perfil sedoso e de rara subtileza. Um Gevrey pulsante — e de notável qualidade. 

  • Vosne-Romanée 2023
    Mais riqueza no meio de boca e uma presença calcária marcante. Fruta entre o vermelho e o escuro, com final longo e delicado. Clássico e sensível. 

“A classic Vosne… delicate and unfolds some red and dark fruits… Vosne spices and a lovely fruit.” – Steen, Winehog

  • Vosne-Romanée 1er Cru "Les Petits Monts" 2023
    Vinho de energia crescente, intenso mas etéreo, especiado e sem excesso. Só falta um bocadinho de "carne" para estar no nível de um Richebourg, mas compensa com elegância e frescura. Um dos melhores do domaine e dos meus preferidos da Borgonha há muitos anos!

“The Petit Monts is one of my favourite wines from this estate… effortless and refined… hedonistic fruit and feel.” – Steen, Winehog

Mais comentários de destaque – 2023 no Domaine Berthaut-Gerbet

Vinho Jasper Morris MW (Inside Burgundy) William Kelley (Wine Advocate)
Fixin Village “Fixin is very promising… brisk fresh cherries… fine tannins.” (90 pts) “Dark berries, orange zest, smoked meats… chalky tannins, lively.”
Fixin En Combe Roy “Startlingly fine… lifted fresh red berries, scented fruit, long finish.” (91–93 pts, ★★★★★) “Peonies, red berries, spice… deeper and purer than generic Fixin.”
Fixin 1er Cru Les Hervelets “Glossy raspberry fruit… fine tannins and natural acidity.” (90–92 pts) “Fleshy, perfumed, brilliant… aromas of violets, orange zest and cherries.”
Vosne-Romanée Village “Strawberry-driven, with energy and fine persistence.” (91 pts) “Red berries, orange zest, saline finish… Réas + Rivière blend.”
Gevrey-Chambertin Village “Richer raspberry fruit… good acidity, complementary plots.” (91 pts) “Dark berries, licorice, good energy and charm.”
Vosne-Romanée 1er Cru Petits Monts “More energy, red/blackcurrant, very long… fresher than Suchots.” (93–95 pts) “Even more ethereal than Suchots… pure, melting and elegant.”

Um Grand Domaine em Formação

O Domaine Berthaut-Gerbet é mais do que a soma de dois legados. É uma promessa cumprida. É uma homenagem ao passado e um sinal luminoso para o futuro. Fixin, Gevrey, Vosne: todos aqui encontram uma nova leitura, mais justa, mais feminina no melhor dos sentidos — no sentido de elegância, subtileza e firmeza interior.

Como está gravado na pedra da antiga casa dos Berthaut:
"Bien faire vaut mieux que dire."
E Amélie, com humildade, precisão e visão, está a fazer muito bem.